domingo, 8 de novembro de 2015

O PAPEL DOS MILITARES



ZERO HORA 08 de novembro de 2015 | N° 18349


FLÁVIO TAVARES*



Meses atrás, em voo do Rio a Porto Alegre, tive longa e amistosa conversa com o ocupante da poltrona ao lado, um jovem capitão da FAB servindo na Base Aérea de Santa Maria. Sua visão dos valores da vida e da função militar nos aproximou. Contei-lhe que me alfabetizei lendo nos jornais os feitos dos nossos pilotos caçando submarinos nazistas no Atlântico Sul. E, já adulto, de quando conheci, em 1961, o coronel Rui Moreira Lima, herói da II Guerra Mundial, com 94 missões de combate aéreo na Europa.

– Ah, o brigadeiro Rui! –, corrigiu respeitosamente, entusiasmado por conhecer um amigo do militar que a Aeronáutica cultiva como um de seus grandes nomes. Ele sabia tudo do brigadeiro Rui, falecido pouco antes, aos 95 anos: de como fora um dos “fundadores” da Aeronáutica, ou da precisão com que bombardeava o inimigo com vetustos caças Thunderbolt, superando os rápidos Stuka alemães.

O jovem capitão tinha lido os livros e visto os filmes sobre o herói brasileiro e dele sabia tudo, menos um detalhe essencial: desconhecia que Rui fora preso e excluído da FAB após o golpe direitista de 1964. E que sua licença de voar fora cassada, e que sobreviveu vendendo produtos de limpeza, porta a porta.

Recordo tudo isto e me indago: é lícito alterar o passado, sonegar realidades ou fatos e armar a História com meias verdades? Ou com mentiras, até?

Vivemos mais tempo em democracia do que os anos da ditadura direitista, mas as escolas militares aparentemente continuam a ensinar que o golpe de 1964 “nos libertou do comunismo”. Ou que a resistência à ditadura visava “implantar uma ditadura comunista”. Os documentos norte-americanos que divulgo em meu livro 1964 – O golpe, mostram como a paranoia da “Guerra Fria” inoculou-se em nossos militares e civis (até de boa-fé) e derrubou o governo que tentava modernizar a arcaica sociedade agrária de então. E a opressão surgiu em nome da “liberdade” e da “democracia”.

Substituir a verdade por fantasias que, há 50 anos, eram táticas políticas da doentia “Guerra Fria”, é mistificar a História. E a mistificação é um crime em si.

Há pouco, a morte do coronel Carlos Alberto Ustra fez com que recebesse homenagens isoladas em um ou outro quartel, sem que dele se conheçam atos de heroísmo. Devemos respeito aos mortos, mas sem ignorar o que foram em vida. Anos atrás, a Justiça o responsabilizou por torturas e mortes, em longo processo judicial em São Paulo, onde chefiou por três anos e meio o Centro de Operações de Defesa Interna. Lá, morreram 50 pessoas e 502 foram torturadas.

As Forças Armadas são instituições permanentes da sociedade e mantêm a integridade territorial. São um corpo imprescindível e lhes cabe atuar como tal – como “corporação”, como um todo acima de suspeitas ou protecionismos pessoais. A minoria que (na lavagem cerebral da “Guerra Fria”) utilizou-se da tortura e do crime não respeitou sequer as leis e normas da corporação militar e, assim, não pode ser confundida com a corporação.

Nem a corporação pode assumir a defesa da minoria tresloucada que o general-presidente Ernesto Geisel chamava, com nojo, de “a tigrada”.

O governo Geisel iniciou o desmonte da ferocidade do regime. O general Figueiredo foi adiante. Os almirantes, brigadeiros e generais de hoje, em democracia e liberdade plena, eram cadetes ou nem envergavam farda quando “a tigrada” chefiou a repressão.

Os oficiais de hoje (o capitão da FAB é um deles) têm direito a conhecer a História por inteiro. Assim, entenderão que o papel histórico dos nossos exércitos de terra, mar e ar nunca foi a maldade ou o ódio.

E que “a tigrada” foi como um tumor e não pode estar acima da corporação militar.

*Jornalista e escritor

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