sábado, 14 de abril de 2012

AS FORÇAS ARMADAS E A GUERRA AO NARCOTRÁFICO.

O papel das forças armadas sul-americanas na guerra ao narcotráfico: os interesses norte-americanos e o posicionamento brasileiro. Por: Welter J. P. Junior é Oficial da Marinha – Curso de Estado-Maior pela EGN e MBA em Gestão Empresarial pelo Instituto COPPEAD de Administração, da UFRJ. TEMPO PRESENTE, 14 De Abril De 2012



INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o combate ao tráfico de drogas se tornou prioritário, em função do alcance transnacional do ilícito, das repercussões políticas e sociais; e das frágeis medidas de repressão adotadas pelos governos. Neste ambiente, os EUA idealizaram empregar as Forças Armadas sul-americanas na repressão direta ao narcotráfico, considerado como uma das “novas ameaças”.



O presente ensaio se propõem a analisar o tema, ainda que sem a pretensão de esgotá-lo, sob dois prismas distintos, mas perfeitamente relacionados: no primeiro, os interesses norte-americanos em propor a discussão, incentivar e implementar um plano de forte interferência na região, e, no segundo, a abordagem feita pelo Brasil sobre a questão, inserindo-o num contexto mais abrangente.

Examinando os esforços americanos em influir na política de segurança da América do Sul, seus antecedentes e como se incluem num bloco de medidas políticas e econômicas mais amplas; detalhando o Plano Colômbia, implementado no território do maior produtor de cocaína do mundo; as ações concretizadas nos demais países da região fronteiriça; e, finalmente, descrevendo o posicionamento do governo Bush, de incentivo à formalização deste novo emprego militar, assim será desenvolvido o tema no entendimento dos EUA, muito associado às perspectivas surgidas após os atentados de 2001.

Sob o enfoque brasileiro, a questão do narcotráfico será desenvolvida pelo detalhamento das normas legais aplicadas ao emprego das Forças Armadas; pela especificação do acompanhamento que as esferas militares e acadêmicas fazem acerca do assunto; por um breve exame da mais relevante interferência já ocorrida no problema da violência urbana e do tráfico de drogas - a Operação Rio, em 1995 -. Por fim, serão estabelecidos os óbices e elementos mais importantes relativos ao aumento da presença de tropas na região amazônica, orientada para dissuadir a ocupação do território brasileiro por grupos guerrilheiros que suportam o narcotráfico proveniente de paises fronteiriços.

INTERESSES E AÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AMÉRICA DO SUL

O final dos anos 80 e o início da década de 90 foram marcados por profundas transformações, como o desmoronamento do império soviético e o fim da Guerra Fria, numa seqüência de eventos que consolidaram novos paradigmas para a política externa dos EUA. Naquele contexto, a inexistência de atores que confrontassem o incontestável poderio americano, serviu para alavancar sua predominância no cenário mundial e a capacidade de influenciar e impor seus interesses políticos e econômicos aos demais Estados, com o respaldo de uma máquina militar de incomparáveis proporções. (7)

Especificamente para a América do Sul - região menos militarizada do mundo, livre de conflitos de grandes proporções, refratária à construção de arsenais nucleares, e constituída por delicados processos democráticos recém-instituídos -, a nova ordem global se mostrou traiçoeira, e “desde a década de 90, a democracia de mercado se desgastou, a crise social se agravou e a instabilidade voltou” (6), contribuindo para um retrocesso em ampla escala, e proporcionando, aos americanos, justificativas para incentivarem o debate rumo “à expansão da agenda de segurança [...], com apoio à democracia, política de migração, proteção de fronteiras, terrorismo, tráfico de drogas”. (7)

O pensamento americano focava em dois interesses claros: estreitar o relacionamento dentro do continente, aumentando a participação dos paises do sul no seu mercado1 ; e atuar no combate às chamadas “novas ameaças”, para as quais, Washington temia, os Estados situados na região amazônica - em processos anêmicos de desenvolvimento e pouco estruturados internamente -, seriam incapazes de lidar da maneira apropriada, principalmente no tocante ao tráfico de drogas, foco específico deste ensaio e que atinge a potência do norte, onde os milhões de dependentes (em cocaína, maconha e heroína), a violência social decorrente e os enormes gastos públicos advindos do seu combate fazem a sociedade exercer pressão sobre o governo. Para os EUA, em determinados países, as instituições – políticas, jurídicas e policiais -, estariam inclusive comprometidas com o crime organizado, sendo incapazes de contê-lo. (9)

O combate ao tráfico internacional de drogas se torna prioridade americana, e os países nas quais as mesmas são cultivadas ou produzidas, seu alvo principal. Os grandes cartéis distribuidores de cocaína, que empregam a selva amazônica como base de armazenagem, apoio logístico e rota de transporte, passam a ser monitorados. (7)

A estrutura do plano se baseia em três aspectos:

- No emprego das Forças Armadas dos paises de origem ou por onde passam as drogas destinadas à Europa e aos EUA (Colômbia, Equador, Peru e Bolívia) e também dos demais países da região, incluindo Venezuela e Brasil (dono da maior faixa de fronteira e da maior extensão da floresta tropical, com possibilidade de ser atingido pelas atividades dos narcotraficantes);

- No desejo do envolvimento militar na repressão ao plantio, produção e refino, por entender que esse problema extrapolou o nível meramente policial, constituindo assunto de Estado e que exige a participação direta de suas forças nacionais; e;

- Na implementação de uma estrutura mais abrangente, nos níveis de vigilância e inteligência, que atinja a complexa rede de distribuição controlada pelo tráfico, com ramificações em vários paises, sem delimitação fronteiriça rígida e garantida por exércitos guerrilheiros.

A conjugação dos elementos acima visa enfrentar uma ameaça que pode se desenvolver, por exemplo, num cenário no qual...

a guerra contra os insurrectos colombianos, que controlam quase a metade do território, corre o risco de se alastrar para a Venezuela, Panamá, Equador e Brasil, provocando, dessa forma, um aumento de tensões e a presença de um excedente de tropas junto a essas fronteiras. Além do que, a política norte-americana em relação à Colômbia aponta para uma extensão das dimensões do conflito. (6)

Os tópicos apresentados até aqui mostram a complexidade e a amplitude das atividades e eventos que compõem o planejamento e destacam a importância atribuída ao problema das drogas pelos EUA, justificando a necessidade de tentar influenciar - ou praticamente impor - aos países da região, a reorientação de suas políticas contra aquele ilícito.

ANTECEDENTES DA AÇÃO MILITAR

Antes de apresentar os aspectos relativos ao combate ao narcotráfico, é importante situar seus antecedentes gerais e como esta abordagem militar para o problema se insere num conjunto de medidas que, ao longo do tempo, demonstram seguir uma linha coerente para alavancar a influência americana na América do Sul.

Mesmo antes dos mandatos do presidente Clinton, entre 1994 e 2000, ocorreram várias propostas nos campos políticos e econômicos, como o incentivo à consolidação democrática e às políticas de influência neoliberal - introduzidas no Consenso de Washington2 -, a discussão para a adoção da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), o incremento dos investimentos em infra-estrutura, além da introdução de cláusulas de interferência democrática nos diversos tratados e acordos celebrados entre os países. Em paralelo à essas proposições, começaram a ser introduzidas nas discussões a nova ótica relativa ao combate às drogas. (3)

Havia, por exemplo, a necessidade de alterar o papel desempenhado pelos órgãos supranacionais existentes na América do Sul, destinados ao planejamento estratégico de defesa. O modelo vigente, adotado deste a 2ª Guerra Mundial e formalizado no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR3), já não mais atendia aos interesses específicos norte-americanos. (1)

Um dos primeiros movimentos para deslanchar essa nova formulação de defesa se deu no Encontro de Williamsburg4, onde se propôs a reorientação de emprego dos militares sul-americanos, a fim de agirem com maior intensidade “na questão da segurança interna e contra o narcotráfico”. (1) Para os americanos, somente o trabalho conjunto dos países atingidos (se possível sob sua subordinação doutrinária), poderia causar impacto no enfrentamento aos verdadeiros exércitos (pelo número de componentes, armamento empregado e pelos vultosos recursos gerados) que protegem e se beneficiam do narcotráfico. Pela proposta americana, caso os militares se empenhassem nesta nova atividade, as Forças Armadas dos EUA assumiriam a responsabilidade pela defesa territorial de todo o continente contra qualquer ameaça externa. (1)

Nos principais fóruns de discussão política e militar, como a “Cúpula das Américas, a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Junta Interamericana de Defesa, as Reuniões de Ministros da Defesa das Américas” (7), as proposições foram (e vêm sendo) sistemática e pragmaticamente aprofundadas. O debate acerca da chamada “segurança cooperativa”, o estreitamento da prática de medidas de segurança mútua, a troca de informações, as missões e operações em conjunto, complementam as bases de implementação deste planejamento. (7)

O PLANO COLÔMBIA

A mais abrangente ação dos EUA se dá através do Plano Colômbia, implementado em 2000 para combater, dentro daquele país, o cultivo e o refino da cocaína, droga de maior penetração em território americano. O plano deveria atingir também, numa etapa posterior, outros “exportadores” de cocaína, como Peru, Equador e Bolívia, e provavelmente abrangeria regiões da selva amazônica nos territórios da Venezuela e Brasil, com o intuito de evitar que servissem como depósito ou caminho de fuga para os traficantes quando combatidos nos países de origem. O Plano Colômbia representou a materialização da estratégia americana de como as Forças Armadas deveriam priorizar o combate às drogas.

Especificamente no caso colombiano, que “tornou-se o terceiro destino da ajuda militar americana, logo depois de Israel e do Egito” (10), a repressão visava, além do comércio das drogas, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), guerrilheiros que controlam grande extensão territorial, correspondente à “uma área de 42 mil Km², equivalente a 40% do território colombiano”5, e travam uma longa guerra civil contra milícias paramilitares ilegais de direita, sendo combatidas, sem grande sucesso, pelo exército nacional. As FARC, de ideologia marxista, graças ao tráfico de drogas, ao qual apóiam e protegem, e também por intermédio dos roubos e seqüestros de estrangeiros e autoridades colombianas, se financiam para a aquisição de armamento e suprimentos para sua luta, supostamente revolucionária.

A preocupação americana de agir na origem do comércio de drogas, sem deixar transparecer uma interferência direta na autonomia colombiana, fica marcada pela presença das denominadas “assessorias militares” e do aporte de recursos para a dotação de meios contra as FARC e narcotraficantes; pela polêmica intenção de empregar a aspersão de produtos químicos e fungos geneticamente desenvolvidos para eliminar as plantações; e pelo incentivo ao plantio de culturas alternativas para os agricultores que antes se dedicavam às drogas.

O Plano Colômbia ainda não alcançou os resultados esperados, pela desconfiança dos demais países fronteiriços, que o consideram a primeira grande interferência americana na região; pelas dificuldades intrínsecas a uma operação de tal porte e também pela necessidade de priorizar os esforços contra o terrorismo no Oriente Médio. No momento, debate-se uma nova orientação para o processo, tendo em vista o aumento do poder das FARC, dos poucos resultados práticos alcançados e da crise institucional que atravessa o país.

MATERIALIZAÇÃO DA PRESENÇA AMERICANA

Não obstante o apoio à Colômbia e aos países próximos, os EUA trabalham, há algum tempo, na construção de uma presença militar, à principio discreta - pelos óbices em se atuar legalmente em território estrangeiro, dependendo de autorização política do Congresso e com a opinião pública interna atenta à uma “aventura” como a do Vietnã -, mas que aos poucos vem adquirindo maior musculatura, observando-se os recursos humanos e financeiros envolvidos.

Bases aéreas, como as de Manta, no Equador, Rainha Beatrix (Aruba) e Mato (em Curaçao), ainda de pequenas dimensões, formarão uma estrutura básica para ações de “rastreio e interceptação de aeronaves usadas por narcotraficantes”6, tão logo sejam resolvidas as questões políticas e jurídicas, como as autorizações para sobrevôo em território estrangeiro. Estas instalações, operadas por americanos, com sofisticados radares de acompanhamento, associadas à pistas para aeronaves de observação e vigilância, fortalecem a idéia de enfrentar as atividades do narcotráfico e das guerrilhas no ambiente amazônico, empregando a tecnologia mais avançada disponível.

Fora da Colômbia, talvez o Equador seja o país que mais receba atenção das autoridades americanas, pela faixa de fronteira entre os dois países e possíveis repercussões que um agravamento da situação interna colombiana possa trazer. Além da base de Manta, “são previstos a construção da Escola de Operações Ribeirinhas, no Batalhão de Infantaria da Marinha, em San Lorenzo, situado no porto de grande porte mais importante na fronteira com a Colômbia.”7.

Na Bolívia, em 2002,

pelo menos 5.000 homens dos Estados Unidos atuavam no país, que mantinha também a maior embaixada do continente, com 900 funcionários.
Além disso, soldados das forças especiais dos EUA procuram levantar possíveis focos de grupos armados que possam resistir às ações contra o narcotráfico, principalmente nas regiões cocaleiras de Chapare e Yungas, onde o governo boliviano colocou em prática, na década de 90, um plano de destruição das áreas de cultivo da coca, o "Plano Dignidade". (11)


Este aparato é servido por instalações em território boliviano, e que são dotadas de radares e aparelhos de comunicação para rastrear vôos clandestinos transportando drogas. O grau de participação efetiva dos militares americanos é enorme, e “a operação e a manutenção desses equipamentos são feitas por técnicos norte-americanos” (11)

Os exemplos citados são apenas uma amostra da amplitude do plano traçado para o subcontinente. Fica transparente a intenção de tratar o assunto de forma predominantemente militar e que as atividades de vigilância e inteligência devem ser priorizadas. A capacidade militar sobrepujante dos EUA, contrastando com a ineficiência das Forças Armadas sul-americanas, poderá se tornar o “fiel da balança” na eliminação ou redução das atividades do narcotráfico.

A AÇÃO DO GOVERNO BUSH

A ascensão de George W. Bush à presidência em 2001 reforçou o processo de imposição de uma nova filosofia de emprego para as Forças Armadas sul-americanas. Após os atentados às torres gêmeas, principalmente, ocorreram movimentos mais explícitos para atrair a atenção dos países ocidentais para o terrorismo internacional radical, a expansão do crime organizado e lavagem de dinheiro, e para o crescimento do comércio de drogas, temas considerados pelos americanos como novos desafios a exigirem atitudes diferenciadas para seu combate. (2)

Entretanto, para a América do Sul, a controvertida agenda de implantação da ALCA, tendendo a sobrepujar os acordos político-econômicos já existentes (como o MERCOSUL e o Pacto Andino), aliado às dificuldades de diálogo com os governos ideologicamente mais à esquerda que passaram a predominar na região (com especial atenção para a Venezuela de Hugo Chaves que, “ao contrário do que deseja Washington – e para todos os exércitos continentais – recusou treinar as Forças Armadas exclusivamente para o combate ao narcotráfico e aos demais tráficos ilícitos” (10), representam obstáculos às intenções norte-americanas. As atitudes de Chaves se constituem, para o ideário dos EUA “um grande fiasco, já que sua política para a América Latina seria, exatamente, evitar a adoção de estratégias autônomas e soberanas pelos exércitos sul-americanos.” (10)

Os atuais esforços dos EUA, além dos acordos já existentes, por exemplo, com Colômbia e Equador, passam pela completa reestruturação da Junta Interamericana de Defesa (JID), para “transformá-la numa agência hemisférica de coordenação da luta contra o crime organizado transnacional e o terrorismo” (9), como afirmou o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld em recente encontro de Ministros de Defesa das Américas. (9)

A agenda americana para o Sul enfrenta dificuldades decorrentes de diversos fatores e pode, inclusive, ser inviabilizada pelo surgimento de atores mais influentes, como o Brasil, que exerce forte predominância junto aos países fronteiriços. Não parece, contudo, que os EUA vão renunciar aos pontos mais importantes e tentarão, sempre que possível, retomar o debate sobre a questão da segurança sul-americana.


Posicionamento brasileiro sobre a questão do combate ao narcotráfico

ATRIBUIÇÕES LEGAIS DAS FORÇAS ARMADAS

O entendimento predominante no Brasil é de que não cabe às Forças Armadas a participação direta no combate ao narcotráfico, por tratar-se de crime cuja competência se situa na esfera das forças de segurança pública, principalmente da Polícia Federal, que deve “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho”, como estabelecido no subitem II do § 1º do art. 144 da Constituição Federal (CF)8, promulgada em 1988.

Em 1999 foi editada a Lei Complementar nº 97 que regulamentava o Art. 142 da CF e estabelecia que “As Forças Armadas – MB, EB e FAB - instituições nacionais permanentes e regulares, [...] destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (grifo nosso)”9. Tal redação, ao mesmo tempo em que reforçava a destinação principal de nossos militares, ou seja, “a defesa da soberania e da integridade territorial” (2), abria a possibilidade de emprego em situações diversas (e que seriam detalhadas posteriormente), para as quais a sociedade civil entendia ser necessária a atuação militar direta.

A interpretação da Carta Magna e sua legislação suplementar aparentemente limita, às atividades secundárias e de apoio, o emprego militar na repressão ao narcotráfico. Contudo, as demandas políticas, baseadas em forte “clamor popular”, tiveram de ser respondidas por ações mais práticas nos anos seguintes. Ao arrepio da lei, as Forças Armadas foram chamadas para se confrontar com os responsáveis pela violência urbana, predominantemente decorrente do tráfico de drogas.

POSICIONAMENTO INSTITUCIONAL

A recente discussão sobre o envolvimento militar na questão do narcotráfico tem sido marcada pela coerência (sendo tratada como autêntica questão de Estado) e, de maneira muito incisiva, pela discordância ao modelo proposto pelos EUA. A despeito das ocasiões em que ocorreram demandas mais fortes por uma intervenção efetiva, nossas autoridades reforçam a negação ao trato estritamente militar feito pelos americanos e como os mesmos vêm desenvolvendo suas políticas nos países fronteiriços a nós, defendendo a independência das nações.

A criação do Ministério da Defesa, em 1999, expandiu a discussão do assunto também para os meios político e acadêmico. A condução das três Forças por um civil, apesar das desconfianças iniciais, não trouxe maiores turbulências ao processo. O ex-Ministro José Viegas Filho, por exemplo, em manifestação recente, opinava que “adoto, como princípio, uma postura conservadora, no sentido de continuar a limitar a contribuição das Forças Armadas ao tipo de apoio que já vem prestando ao Estado. É a polícia o instrumento do Estado para reprimir atividades criminosas” (4)

Seu antecessor, Geraldo Magela da Cruz Quintão, apesar de admitir que “o incremento do relacionamento com os países vizinhos, no campo da defesa, é conseqüência natural da aproximação política e econômica que vem ocorrendo”, num discurso que aparentava concordar com uma das aspirações norte-americanas, ou seja, a implementação de uma grande força continental para tratar dos ilícitos, ressalvava logo a seguir que havia “dificuldade de elaboração de uma concepção única de segurança aplicável às três massas continentais, em virtude da grande diferença de realidades geográficas, políticas, econômico-sociais e culturais”, externando a posição brasileira de caber à cada Estado a busca por soluções particularizadas e que ainda não haveria condições para o surgimento de um órgão supranacional de segurança. Para arrematar, afirmava ser “preciso que cada Estado defina com clareza a sua percepção acerca dos conceitos de defesa e segurança” (8).

O ex-ministro prosseguia em sua tese, tratando especificamente do tema deste trabalho, quando afirmava que

a questão do narcotráfico é, no Brasil, de natureza policial por disposição constitucional expressa. Neste campo, o Governo brasileiro tem tomado medidas que contemplam, além de grandes investimentos voltados para o reforço da estrutura policial, o aumento da participação das Forças Armadas em atividades de apoio logístico, inteligência e de respaldo à ação das polícias, missões estas definidas na Constituição. (8)

Não se pode deixar de registrar, contudo, que já houve quem estivesse aparentemente afinado - ou que não descartaria -, a um enfoque de segurança aderente ao adotado pelos americanos. O ex-Chefe do extinto Estado-Maior das Forças Armadas, General-de-Exército Benedito Bezerra Leonel antecipava em 1998 que

As Forças Armadas são um dos instrumentos mais válidos do campo da defesa. Elas não podem desconhecer as novas formas de ameaça. Então, nós temos de ver as nossas instituições, se elas estão atualizadas para responder a esse novo desafio.10

uma interpretação que, anos adiante, tornar-se-ia bem mais explícita no Exército, comprometido em aliar suas destinações constitucionais ao emprego específico para os paradigmas do novo milênio, principalmente os associados à Amazônia, considerada prioridade pela força terrestre e avaliado como ambiente mais propício para deflagrar o combate ao tráfico internacional de drogas, tomando como referência as operações que o exército colombiano desenvolve contra as FARC. O crescimento do apoio logístico aos guerrilheiros, proveniente do lado brasileiro da fronteira, necessita ser reprimido, e o Exército trabalha no reforço a sua presença ao longo das fronteiras e no aumento de seus efetivos nos diversos quartéis da região, a fim de dissuadir ou atuar diretamente, caso necessário.

AÇÃO URBANA E NA REGIÃO AMAZÔNICA

O debate sobre o emprego das Forças Armadas na luta contra o narcotráfico e o crime organizado assume também dramática atualidade em função dos acontecimentos recentes em nosso país, em particular no Rio de Janeiro. (4)

No decorrer da década de 90, com a expansão da violência urbana, em diversas ocasiões foi colocada à prova a capacidade do Estado em prover segurança aos cidadãos, especialmente no Rio de Janeiro. Diante das demonstrações de poder das quadrilhas armadas e financiadas pelo tráfico de drogas, restringindo direitos fundamentais da população, passou-se a cobrar dos governantes a inserção dos militares na questão, e não somente no apoio logístico ou nas atividades de inteligência, como legalmente previsto.

Entre o final de 1994 e meados de 1995, foi realizada a Operação Rio, com o ambicioso propósito de erradicar as quadrilhas de traficantes. A população carioca aprovou a intervenção militar, e a simples presença das tropas nas ruas, somada à execução de incursões nos morros da cidade - acompanhadas por membros da sociedade civil e agentes do Poder Judiciário, para cumprir Mandatos de Prisão e na busca de armamento ilegal e drogas -, proporcionaram um aumento na sensação de segurança das pessoas. Entretanto, houve suspeitas de que a operação “foi marcada por torturas, prisões arbitrárias e buscas sem mandado judicial, além de pelo menos um caso de uso desnecessário de força letal”11, informação obviamente contestada pelas autoridades, mas que deu aos estudiosos do problema a certeza de que a presença das Forças Armadas não constituiria a solução definitiva para o problema do tráfico nos grandes centros urbanos do país.

Nos anos seguintes, quando as condições de segurança no Rio de Janeiro extrapolaram certos limites, foram executadas outras operações de menor envergadura, para tentar conter o binômio violência urbana e tráfico de drogas, por intermédio da ocupação temporária de comunidades e da presença de tropas nas principais vias. Porém, a certeza do efeito meramente paliativo e o visível desconforto dos chefes militares em relação a este desvio das atribuições constitucionais (pelo temor de um envolvimento direto da tropa com os bandidos), provocaram o retorno da condução das ações de segurança ao governo estadual.

Em paralelo à discussão do emprego ostensivo nos centros urbanos, para conter a violência, a distribuição e a venda de tóxico á pequenos usuários, abriu-se, mais recentemente, na sociedade brasileira, outro ponto para análise da participação mais direta dos militares no combate ao narcotráfico. Trata-se de um dos diversos aspectos que compõem o reforço à presença de tropas na região amazônica e dos esforços para ampliar a proteção da grande floresta tropical, principal item da campanha dos EUA, onde, como já observado, estão ocorrendo – e certamente se intensificarão -, atividades de cunho militar que poderão repercutir com

a operação (esporádica ou permanente) em território brasileiro de guerrilhas estrangeiras; o ingresso ocasional de tropas estrangeiras, americanas ou de países vizinhos, em território brasileiro, em perseguição a guerrilheiros; agressões eventuais a brasileiros nessas circunstâncias e movimentos significativos de refugiados provenientes de países limítrofes. (5)

Nossas Forças Armadas, cientes da evolução destes cenários, passaram a desenvolver doutrinas e um planejamento estratégico que inclui o aumento dos efetivos, maior presença nas fronteiras, incremento de ações de inteligência, elevação do grau de aprestamento, investimentos em meios e instalações, etc, redimensionando nossa capacidade de resposta a um possível desdobramento de eventos que venham a ocorrer na floresta amazônica.

NOVAS PERSPECTIVAS

O Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Neto afirma que

qualquer brasileiro preocupado com a escalada da violência e do crime, sofisticado e pesadamente armado, nas cidades grandes e agora médias, e com o consumo de drogas em aberta e acelerada expansão no Brasil deve concordar com a necessidade de eficiente vigilância das fronteiras, inclusive terrestres. Qualquer individuo realista reconhece que esta vigilância não pode ser feita por organizações privadas mas sim pelo Estado e que, dentro do Estado, a defesa e o controle das fronteiras deve caber às Forças Armadas, coadjuvadas pela Policia. (5)

Recentemente, o atual ministro José Alencar, em reunião com os demais Ministros de Defesa, e na presença do secretário americano Rumsfeld, deixou claro que “compete às forças policiais e órgãos de inteligência de cada pais trabalhar para prevenir o terrorismo e o crime organizado transnacional, com base na cooperação e no intercâmbio de dados de inteligência”. (2)

A participação das três Forças nas recentes Operações Timbó, em conjunto com órgãos como a Polícia Federal e a Receita Federal, serve como parâmetro para determinar a importância atingida pela defesa do território amazônico e pela repressão às atividades ilícitas mais comuns da região. Baseando-se na recente Lei nº 117, que estabelece para o Exército, entre outras, as atribuições de

atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as ações de: a) patrulhamento; b) revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e c) prisões em flagrante delito. (lei 117)12

pode-se vislumbrar este tipo de ação como a mais apropriada comunhão entre as elevadas tarefas inerentes às Forças Armadas e o atendimento das expectativas da sociedade, que exige a ação firme do Estado nos diversos temas contemporâneos interdependentes - controle de fronteiras, ação de presença na Amazônia e repressão aos ilícitos -, que podem se aprofundar e trazer graves prejuízos ao país caso não sejam devidamente enfrentados.

Os últimos movimentos ratificam a idéia de que o Brasil não pretende seguir a linha de atuação apresentada pelos americanos. Autonomia e independência na proposição de soluções para os problemas nacionais são sempre prioridade. Como exemplo, cita-se a recente implementação dos modernos Sistemas de Proteção e Vigilância da Amazônia (SIPAM e SIVAM), cobrindo toda a floresta e fornecendo informações em tempo real para os órgãos que desenvolvem atividades relacionadas à região; a promulgação da denominada “Lei do Abate”, autorizando à FAB atacar aeronaves que não prestem informações sobre seus vôos – e que já acarretou uma significativa redução na quantidade de vôos suspeitos -; a explosão, pela Força Aérea e pela Polícia Federal, das inúmeras pistas clandestinas usadas pelos traficantes; entre outras iniciativas, demonstrando um aumento significativo nas políticas governamentais para a região, conciliando desenvolvimento e efetiva presença do Estado.

CONCLUSÃO


Os diversos aspectos apresentados no presente trabalho ofereceram ao leitor a oportunidade de compreender a estratégia norte-americana para a militarização do combate ao narcotráfico na América do Sul e o tratamento que o Brasil faz da questão, com suas peculiaridades. A inserção desse planejamento numa política mais ampla para o subcontinente e os antecedentes que formam a base doutrinária para justificá-lo evocam os novos paradigmas da ordem mundial, no qual prevalecem ameaças difusas.

O Plano Colômbia, que se constitui na primeira experimentação prática de atuação americana, mesmo que velada, pelas dificuldades decorrentes de sua complexidade e por ser considerado pelos demais países sul-americanos como uma inaceitável interferência, tem recebido críticas e pode não atingir seu objetivo de expandir-se pela América do Sul, principalmente no contexto dos governos de esquerda que predominam no bloco amazônico. Mesmo assim, concorrentemente, estão havendo ações concretas nos países da região, com a utilização de bases aéreas e a expansão das atividades de inteligência e vigilância, todas com a presença de militares e técnicos americanos. A política do governo Bush, de constante pressão e buscando definir um novo reordenamento doutrinário para as instituições sul-americanas, para constituírem órgãos que privilegiem as questões de segurança interna, deverá se aprofundar no futuro.

Finalmente, a interpretação que nosso país faz do problema do narcotráfico é discutida pela exposição da legislação que baseia o emprego das Forças Armadas e pela descrição da Operação Rio, na qual tropas militares se envolveram diretamente no combate ao tráfico de drogas em zonas urbanas e que serviu para enumerar conclusões acerca do foco apropriado para a participação dos militares sem desvirtuar suas atribuições legais. Os esforços para que a ocupação militar da região amazônica seja incrementada, já que é considerada como ambiente no qual devem ocorrer as iniciativas mais fortes na repressão aos ilícitos e, finalmente, uma breve discussão sobre as perspectivas e iniciativas que nossos governos vêm adotando, numa postura dissociada do pensamento sugerido pelos americanos, permitem a formação de um quadro geral das possibilidades de utilizar as Forças Armadas brasileiras no combate ao trafico internacional de drogas.



Notas:

1 As primeiras iniciativas para a instituição da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) são o mais importante exemplo dessa política.
2 Encontro ocorrido em 1989, onde especialistas do governo dos EUA, Fundo Monetário Internacional (FMI) e economistas de diversos países latino-americanos propuseram alterações nas políticas econômicas adotadas na região, com o propósito de retomar o processo de crescimento.
3 O TIAR, de 1947, foi celebrado entre os países das Américas, e enuncia que tais Nações possuem direito à exercer suas legítimas defesas individuais e coletiva no caso de sofrerem ataque armado. Serviu para definir quais as situações motivariam a premissa de que o ataque a qualquer Estado americano seria interpretado como uma agressão contra todos os demais.
4 Realizada em julho de 1995, em Williamsburg, Virgínia, EUA, representou a primeira “conferência com a presença dos Ministros da Defesa dos países da América, à exceção de Cuba. A agenda dessa conferência foi a seguinte: transparência e medidas de confiança mútua; cooperação defensiva pós-Guerra Fria; Forças Armadas nas democracias do século XXI.” (1)
5 Como citado no texto “Guerrilhas ameaçam nossa soberania na Amazônia”.
Está disponível em: < http://hps.infolink.com.br/peco/amazonia21/ama2101b.htm >.
Foi acessado em 21 jun. 2005.
6 Retirado do texto “EUA já tem 20 guarnições na América do Sul”, escrito por Humberto Trezzi.
Está disponível em: < http://www.defesanet.com.br/zh/25mar01.htm >.
Foi acessado em 22 jun. 2005.
7 Retirado do texto “Southcom prossegue em gradual ocupação militar do Equador”, escrito por Marcelo Larrea.
Está disponível em: < http://www.adital.com.br/site/noticias/9522.asp?lang=PT&COD=9522 >
Foi acessado em 17 jul. 2005.
8 Expresso na Constituição da República Federativa do Brasil.
Está disponível em: < http://www.mt.gov.br/redirect.php?url=http://www.senado.gov >
/bdtextual/const88/const88.htm >. Foi acessado em 18 jul. 2005.
9 A Lei nº 97, de 9 de junho de 1999 dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas.
Está disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp97.htm>.
Foi acessado em 22 jun.2005.
10 Como descrito no texto “Narcotráfico”, publicado no Jornal O Estado de São Paulo em 2000.
Disponível em < http: www.oesp.com..br/textos/21082000.htm. >
Foi acessado em 18 jun. 2005
11 Como citado no Relatório da Human Rights Watch, elaborado por James Louis Cavallaro e Anna Claudia Monteiro, intitulado Violência x Violência: Violações aos Direitos Humanos e Criminalidade no Rio de Janeiro. .
Está disponível em: < http://www.dhnet.org.br/w3/hrw/hrwrio.htm. >.
Foi acessaso em 22 jul. 2005
12 Como expresso na Lei complementar nº 117, de 2 set. 2004.
Está disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp117.htm >.
Foi acessado em 22 jun. 2005

Bibliografia

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fonte: Laboratório de Estudos do Tempo Presente. Universidade Federal do Rio de Janeiro/Universidade do Brasil. Instituto de História

Indicação: José Andersen via face