domingo, 3 de novembro de 2013

SOLDADOS DA BORRACHA, UMA GUERRA SEM FIM

ZERO HORA 03 de novembro de 2013 | N° 17603

MARCELO MONTEIRO | PORTO VELHO (RO)

GUERRA DA BORRACHA


Es quedas de Adolf Hitler e Benito Mussolini e as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki não trouxeram paz para um grande contingente de brasileiros.

Sete décadas após o fim da II Guerra Mundial, os soldados da borracha ainda buscam reconhecimento pelo sacrifício a que foram submetidos em nome da pátria no chamado “front interno”.

Recrutados pelo governo do presidente Getúlio Vargas para atuar na extração de látex, que seria enviado à indústria bélica americana, os remanescentes da Batalha da Borracha lutam pela equiparação salarial com os integrantes da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Com idade avançada – muitos deles têm sérios problemas de saúde –, esses heróis esquecidos veem no possível aumento nos ganhos a última esperança por dias melhores no fim da vida.

Em 1988, com a sua inclusão oficial na condição de combatentes da guerra, os soldados da borracha passaram a ter direito a uma pensão vitalícia, de atualmente R$ 1,35 mil, menos de um terço do soldo recebido pelos pracinhas (R$ 4,6 mil).

– Quando o governo precisou, eles (trabalhadores) vieram de boa vontade. Agora é a hora de reconhecer o esforço desses homens – afirma George Menezes, neto de soldado da borracha e atual vice-presidente do Sindicato dos Soldados da Borracha e Seringueiros de Rondônia (Sindsbor).


UM FRONT NA SELVA

Entre 1942 e 1945, cerca de 60 mil brasileiros – em sua maioria, nordestinos – fugiram da seca no Sertão, migrando para a Amazônia. Acreditando na promessa de prosperidade propagandeada pelo governo, sonhavam com trabalho e fortuna. Porém, nos seringais inóspitos de Amazonas, Pará, Acre e na área do atual Estado de Rondônia (criado oficialmente em 1982), a maior parte deles – em torno de 35 mil – deparou com a morte.

O índice de baixas foi muito maior do que entre os pracinhas da FEB – enquanto cerca de 35 mil arigós morreram na Amazônia, 465 militares sucumbiram no front italiano. Além de doenças como malária, beribéri, tuberculose e febre amarela, muitos pereceram atacados por onças, sucuris e cobras peçonhentas e até por índios nativos, ainda selvagens. Outros ainda terminaram assassinado por pistoleiros a mando de seringalistas, verdadeiros coronéis da borracha, que em suas propriedades adotavam práticas hoje consideradas análogas à escravidão.

Se, na propaganda oficial, o governo prometia aos migrantes toda a estrutura necessária – alimentação, estadia e materiais de trabalho como tigelas, facas, baldes e bacias –, na prática, os seringueiros já chegavam à Amazônia com dívidas junto aos donos dos seringais.

– Não nos foi dado nada. Foi vendido. Compramos tudo. Aliás, compramos esses utensílios duas ou três vezes – conta o baiano Antônio Barbosa da Silva, 90 anos.

Recrutado em abril de 1942, em sua cidade natal, Alagoinhas, dois meses depois Silva já estava na região onde hoje fica Porto Velho (RO). Segundo ele, em razão do alto preço determinado pelos seringalistas, que monopolizavam a venda de itens de alimentação e higiene, com valores entre 200% e 400% acima do mercado, os trabalhadores dificilmente conseguiam produzir o suficiente para quitar as dívidas.

Impedidos de plantar frutas e verduras e de criar animais para consumo próprio – o que reduziria os ganhos dos seringalistas –, os trabalhadores eram obrigados a pagar o valor imposto nos barracões por produtos como farinha, carne seca e fumo. Um pacote de café, por exemplo, chegava a custar quatro vezes o preço pelo qual era vendido nas cidades. Assim, quanto mais os seringueiros trabalhavam, mais endividados ficavam.

– Eles diziam: “ó, arigó, esse rancho você leva e, se não produzir (látex), não tem mais. E, se tentar fugir, eu mando atrás e mato”. E matavam mesmo – lembra Silva.

Só um em cada 10 homens conseguiu voltar para casa

Criados para organizar o recrutamento e a transferência dos trabalhadores para a Amazônia, o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta) e a Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para Amazônia (Caeta) prometiam aos arigós – trabalhadores que aceitavam a missão nas inóspitas terras do Norte – toda a assistência médica e social necessárias. O governo ainda garantia que, após a guerra, quem quisesse poderia retornar para a cidade de origem, sempre com o apoio oficial.

Entretanto, dos 60 mil jovens que migraram para o Norte, estima-se que apenas 6 mil – um em cada 10 trabalhadores – tenham efetivamente voltado para casa. Os outros quase 20 mil – o número é estimado, pois não há dados oficiais exatos – permaneceram na Amazônia, muitos endividados com os seringalistas, outros simplesmente sem dinheiro para retornar para o Nordeste.

Entre os que ficaram na região, a assistência oficial praticamente inexistiu. A imensa maioria nunca contou com atendimento médico ou proteção jurídica do Estado. Abandonados à própria sorte, por vezes a milhares de quilômetros do aglomerado urbano mais próximo, muitos morreram à míngua, isolados do mundo, deixados para trás como um dos tantos – e tristes – espólios da II Guerra Mundial em todos os continentes.





Filho de migrante perde a juventude na floresta


Descendente de soldado da borracha, o cearense Antônio Falcão Ribeiro, 80 anos, chegou ao seringal ainda criança, com apenas sete anos. Depois de um ano na Amazônia, viu-se obrigado a enterrar o pai, vítima de beribéri, e viveu na pele o sofrimento que se tornaria companheiro dos milhares de migrantes vindos do Nordeste.

Depois da morte do pai, inocentemente, Falcão pediu ao seringalista para mandá-lo de volta para Beberibe, no Ceará, para reencontrar a família. Irritado, o dono da fazenda mandou amarrá-lo e colocá-lo para dormir embaixo do piso de madeira do barracão, sobre uma esteira de pelo de burro. E ainda o ameaçou:

– Se você sair daqui, eu lhe mato.

– Mas eu não ia. Porque pra onde eu ia? Para todo lado era só água e mata, né? – lembra, com dificuldades de conter o choro.

Falcão conta que, em razão dos altos preços dos mantimentos vendidos no barracão, não havia como obter um saldo a receber, por maior que fosse a produção de borracha, também chamada na época de goma elástica:

– Você chegava e pedia: “Um quilo de açúcar”. “Não tem”, mas ele colocava no papel. Quando chegava o mês de junho, e a gente ia fazer conta, e o caderno dizia “você tirou tanto, tanto, tanto e uma saca de açúcar.” E eu dizia: “não tinha açúcar.” Ele batia a mão em um rifle e dizia “não tinha, mas vai pagar”.

Sem poder voltar para casa, Falcão cresceu na mata, “pelado como os animais”, trabalhando até 16 horas por dia sem nunca ter visto um centavo. Só foi liberado, homem feito, quando o seringalista avisou que, enfim, poderia seguir o seu rumo:

– Perdi minha mocidade no mato, sem ser rapaz nem adolescente. De criança, eu passei a velho. Não aprendi e ler e escrever, porque macaco não é professor, onça não é professor, anta também não. E era quem podia me ensinar. Mas o mundo me ensinou, foi respeitar os outros – diz, enquanto limpa as lágrimas.




Batalha atual nos corredores de Brasília


Hoje, os soldados da borracha mais jovens são octogenários. No fim da vida, os cerca de 6 mil remanescentes espalhados pelo Norte querem apenas o que lhes foi prometido. A batalha pela equiparação com os pracinhas da FEB se arrasta há décadas. Os últimos capítulos dessa saga foram escritos nos últimos meses. Só neste ano, cinco deputados federais pediram a inclusão na pauta do dia da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 556. Apresentada em junho de 2002 pela deputada Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), a medida concede aos soldados da borracha os mesmos direitos que já valem para os ex-combatentes da FEB, como aposentadoria e pensão especiais, inclusive para os filhos.

Em outubro, o governo federal descartou qualquer possibilidade de equiparação entre as duas categorias. Propôs aos seringueiros aumento salarial de R$ 144 sobre o atual vencimento, com um bônus, a título de indenização, de R$ 50 mil. A proposta deve ser encaminhada à apreciação da Câmara a qualquer momento.

Em nota, o Sindicato dos Soldados da Borracha e Seringueiros de Rondônia considerou a medida “um tanto vergonhosa e injusta”. Segundo o sindicato, a indenização proposta pelo governo equivale a um pagamento de R$ 62 mensais, levando-se em conta os 68 anos de espera decorridos desde o fim da guerra.

Em março, na luta para tentar chamar a atenção do drama histórico vivido pelos soldados da borracha, uma comitiva esteve na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, nos EUA. Para muitos soldados da borracha, depois de sete décadas, a esperança no reconhecimento é pequena.

– Quando fomos convocados para cá, disseram que teríamos tudo. E nada tivemos. Era para, quando terminasse a guerra, nós sermos reconvocados e mandados para o nosso torrão natal e sermos indenizados. A guerra terminou e nada disso fizeram – resume Antônio Barbosa da Silva, 90 anos.







ZERO HORA 06/11/2013


CONTAS COM O PASSADO. Câmara aprova indenização para soldados da borracha


PEC prevê R$ 25 mil a seringueiros recrutados durante a II Guerra para produzir borracha a fim de abastecer a indústria bélica norte-americana


Por 347 votos a quatro, a Câmara dos Deputados aprovou ontem a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que prevê indenização para os chamados “soldados da borracha”, seringueiros recrutados na II Guerra Mundial para produzir borracha natural na Amazônia e abastecer a indústria bélica dos EUA. Pela PEC, eles receberão indenização de R$ 25 mil. O texto segue agora para o Senado.

Os dependentes de quem já morreu também serão beneficiados com R$ 25 mil, rateados entre os pensionistas conforme a parte que couber a cada um. Além da indenização, que será paga em parcela única, a pensão mensal vitalícia aos ex-seringueiros e familiares será reajustada de R$ R$1.356 a R$ 1,5 mil. Atualmente, há cerca de 12,8 mil beneficiários.

A luta dos seringueiros foi tema de reportagem especial de Zero Hora de domingo passado. Os soldados da borracha foram, em sua maior parte, nordestinos recrutados pelo governo de Getúlio Vargas para trabalhar nos seringais da Amazônia durante a II Guerra Mundial. A produção brasileira supriu a necessidade de borracha natural dos Aliados devido à ocupação, por parte dos japoneses, das principais regiões produtoras na época, na Malásia.

Com isso, Brasil e EUA, que eram aliados na II Guerra, assinaram acordo segundo o qual o governo norte-americano faria investimentos na produção de borracha amazônica e, em contrapartida, o governo brasileiro encaminharia a mão-de-obra necessária. Parte da produção seria exportada aos EUA para produção bélica.

A partir deste acordo, milhares de pessoas de várias regiões do Brasil, sobretudo do Nordeste, foram contratadas para trabalhar nos seringais da Amazônia. Jovens foram, inclusive, recrutados para atividade, sem possibilidade de rejeitar o trabalho. Estudos mostram que cerca de 30 mil seringueiros morreram em decorrência de doenças como a malária.

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