Congresso em Foco | 05/09/2012 07:00
“Será
que todos aqueles soldados chamados para atuar na Rio+20, com fuzis na
mão, em vias públicas, estavam de fato preparados para responder no caso
de um distúrbio civil?”
Marcos Leôncio Sousa Ribeiro*
“Bate,
espanca, quebra o osso. Bate até morrer”, estariam entoando militares
do 1º Batalhão da Polícia do Exército em treinamento nas ruas do Rio de
Janeiro. O recente episódio, negado pelo Ministério da Defesa, mas
amplamente divulgado na imprensa, nos faz refletir sobre qual modelo de
segurança cidadã o Brasil deseja sedimentar nos próximos anos para atuar
nos grandes eventos. Um exemplo calçado no fortalecimento dos órgãos de
segurança ou sedimentado na atuação invasiva das Forças Armadas? A
última opção, que volta e meia se descortina no discurso do governo, é
um modelo que não deixa legado e, ainda por cima, expõe negativamente a
imagem do Brasil perante as demais grandes nações.
O
governo anunciou que investirá R$ 1,17 bilhão com segurança na Copa de
2014. O projeto previa a instalação de centros de comando e controle nas
12 cidades que receberão o Mundial no Brasil. Inicialmente, os recursos
seriam gerenciados pela Secretaria Extraordinária de Segurança de
Grandes Eventos, criada no âmbito do Ministério da Justiça com o intuito
de promover a integração das forças policiais. Além disso, a secretaria
criaria padrões de atendimento e treinamento para deixar ao país um
“legado de segurança”, tanto do ponto de vista tecnológico, quanto de
infraestrutura e capacitação. Entretanto, ante o volume de recursos
envolvidos, eis que surge um novo ator cobiçando uma enorme fatia do
bolo: as Forças Armadas.
O problema é que o Ministério
da Defesa elabora um planejamento para responder às demandas de
segurança de um evento específico. Finda a missão, levanta acampamento e
vai embora. Não fica nada para trás. Não há uma melhoria na segurança
pública no pós-evento. Os investimentos ficam aquartelados. Nada é
revertido para a sociedade. Os veículos utilizados não servirão depois
para o policiamento; nem os equipamentos, no combate à criminalidade.
Quem
acompanhou a Eco-92, os Jogos Mundiais Militares e a Rio+20 sabe que os
recursos aplicados não ficaram no Rio de Janeiro. As Polícias
Estaduais, Corpo de Bombeiro, Defesa Civil, Órgãos de Trânsito, Guardas
Municipais e as Polícias Federais embora tenham executado os trabalhos
foram simplesmente preteridos pelos supostos “coordenadores do trabalho
alheio”. Os recursos foram abocanhados pela Defesa e pelo Itamaraty. Uma
semana depois da conferência, a população carioca já reclamava pelo
desmonte do aparato de segurança do evento. Não ficou legado algum.
Com
o Ministério da Defesa na coordenação, há uma integração pontual,
apenas para o evento. Entretanto, sua atuação não deixa esse legado que a
população tanto anseia. Já sob o comando da Secretaria Extraordinária
de Segurança de Grandes Eventos seriam estipulados protocolos de atuação
entre as diversas instituições de segurança pública para funcionar não
apenas durante os eventos, mas em prol da segurança pública no dia-a-dia
após os eventos.
A perda de recursos pelos órgãos de
segurança pública é outro problema gerado pela intromissão da Defesa.
Enquanto a Secretaria Extraordinária de Segurança de Grandes Eventos
estava à frente da coordenação da Rio+20, a Polícia Federal iria receber
recursos na ordem de R$ 28 milhões para compra de lanchas,
helicópteros, viaturas, equipamentos para o evento e, principalmente,
para uso no combate às drogas e ao crime organizado no Rio de Janeiro,
após a Rio +20.
Depois que o Ministério da Defesa
assumiu o comando, os recursos encolheram 50% e se resumiram ao custeio
dos policiais federais recrutados. A diferença foi destinada ao
Exército, Aeronáutica e Marinha que, juntos, abocanharam mais de R$ 40
milhões para a Conferência. Ou seja, foram R$ 14 milhões que deixaram de
ser investido na Polícia Federal que, após o evento, continuaria
beneficiando as operações da instituição, responsável pelo combate ao
desvio de recursos públicos e à corrupção.
O combate
aos crimes cibernéticos é outro exemplo dessa disparidade. O Centro de
Defesa Cibernética do Exército teria recebido R$ 80 milhões para atuar
nos grandes eventos. Entretanto, essa atuação será pontual. O Exército
tem a missão de proteger apenas algumas estruturas cibernéticas dos
próprios militares. Enquanto isso, a Polícia Federal que, por meio de
seu Centro de Segurança Cibernética, tem a responsabilidade de monitorar
as mais variadas ameaças cibernéticas, a missão de proteger as redes do
governo e reagir aos mais de dois mil ataques de hackers que estas
redes sofrem por hora, hoje tem disponíveis meros R$ 500 mil para a
área.
Para além do legado que se espera, são as
polícias que têm experiência e maturidade para atuar no ambiente urbano.
Será que todos aqueles soldados chamados para atuar na Rio+20, com
fuzis na mão, em vias públicas, estavam de fato preparados para
responder no caso de um distúrbio civil? E essa resposta seria adequada e
proporcional, ou iria culminar com uma crise pelo mau uso de uma arma
de guerra num ambiente urbano? Não dá para contar sempre com a sorte de
que nada vai acontecer. Ademais, mesmo para profissionais de segurança, a
presença ostensiva de carros militares e soldados empunhando fuzis não
era uma visão agradável de ver na orla de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Para quem se propõe a coordenar e integrar esforços,
na Rio+20 as Forças Armadas foram responsáveis por uma prática
abominável: uma espécie de bullying institucional. Em vez de buscar o
diálogo e o entrosamento entre as forças policiais, os ínfimos
incidentes eram relatados diretamente à Casa Civil, sem antes passar
pelas instâncias específicas dentro das próprias instituições
responsáveis. Muitos problemas detectados, inclusive, eram falsos ou
impertinentes, mas foram usados como forma de desmoralizar ou mitigar a
atuação das forças policiais.
A grande questão é: que
imagem o Brasil quer mostrar para o mundo? Dentro de uma normalidade
democrática, um país que deseja ser referência mundial sinaliza muito
mal com o emprego das Forças Armadas em substituição aos órgãos
regulares de segurança pública. Isso é algo impensável nas nações mais
desenvolvidas e indesejado pelas organizações internacionais que
promovem a Copa e a Olimpíada.
É preciso atenção ao
movimento que as Forças Armadas estão realizando nos bastidores da
República para assumir a coordenação da segurança pública nos próximos
grandes eventos. Esse modelo traz consigo o risco de não deixar legado
aos órgãos de segurança pública. Para os trabalhadores de segurança
pública é uma sinalização de que o governo não confia no trabalho das
instituições que atuam no dia-a-dia, levando a um esvaziamento de
atribuições e orçamentário dessas forças. Para a sociedade, cabe uma
reflexão acerca do modelo que deseja: civil como base para um Sistema
Único de Segurança Cidadã ou militar sem nenhum legado. Os romanos
antigos já ensinavam que, em favor da República, ao Exército era
proibido entrar em Roma.
*Presidente da Associação
Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) e membro do Conselho
Nacional de Segurança Pública (Conasp)